Desculpem-me aqueles articulistas, infelizmente talvez uma grande parte, que pensam que artigos de jornal deveriam ser usados só para enaltecer as respectivas profissões, partidos, igrejas ou pedir aumento e emprego público. Para mim, para ser convenientemente aproveitado e gerar leitores (não perdê-los, como tem acontecido, pois muitos têm-me reclamado), esse espaço deveria ser um ‘espaço de debates’, com críticas e autocríticas a si e à profissão. Se não formos nós, que conhecemos, e estamos dentro da profissão, para criticá-la, quem o fará com proveito e propriedade? E como é que ela irá melhorar sem críticas?
Há dois meses, todo o País, e principalmente a sociedade paulistana, ficou boquiaberto de saber que seu mais importante obstetra, Roger Abdelmassiz, estava sendo acusado de assédio sexual por nada menos que 40 pacientes. Todos se assustaram, talvez menos a classe médica, uma vez que este tipo de assunto circula muito de consultório a consultório, de médico a médico. O obstetra, numa demonstração pública de raro cinismo, alegou que eram as pacientes que, sob efeito de um anestésico ‘liberador’, o assediavam. Talvez, portanto, elas é que devessem ser processadas – fica aí a dica.
Nisso tudo não deixa de remanecer uma questão: ‘como é que um médico desses é tão famoso, tão ‘society’, aparentemente tão competente?’ É aqui que adentramos na complexidade da psicologia humana e da psicologia médica em particular. A profissão médica é altamente competitiva, em todos os sentidos: o vestibular é agressivo, ‘fábrica de loucos’ (talvez mais literalmente do que possamos pensar), o peso de matérias e da prática estudantil é massacrante, os procedimentos médicos em si exigem sangue frio, ação rápida e cortante. Essas características atraem e selecionam indivíduos muito inteligentes, mas também muito agressivos, competitivos, frios, ambiciosos, cheios de energia, inclusive de energia libidinal. Esta última pode ser muito mal canalizada, sobretudo quando o indivíduo não tem formação moral, religiosa, ou não está submetido a um controle externo adequado (assim como no Congresso, onde o ‘deputado do Castelo’ era o corregedor-maior de todos os outros deputados, nenhuma profissão fiscaliza e pune a contento os próprios membros, e isto não vale apenas para os médicos, mas também para os juízes, promotores, engenheiros, jornalistas, militares, sacerdotes etc.).
Um médico inteligente, astuto, cheio de energia, se souber agir irá se firmar na alta sociedade, e com todo o marketing, como alguém muito eficiente e muito glamouroso: é tudo que a ‘alta society’ quer, daí seu grande gosto por Abdelmassiz e muitos outros similares que por aí estão. Para esses fatores há outros agravantes: em muitas especialidades médicas, como, por exemplo, ginecologia, obstetrícia, pediatria, psiquiatria, as pacientes e mães estão fragilizadas emocionalmente, sendo um prato cheio para o predador que se insinua como poderoso, protetor, sensível, inteligente, ‘educado’. Muitas mulheres são mesmo acintosamente atacadas, outras permitem a insinuação, ou por causa de alguma perturbação mental desapercebida ou por causa de uma fragilidade conjugal que se arrasta.
Muitas vezes são pacientes aparentemente normais psiquicamente, e até normais mesmo, que se lançam em direção ao médico: daí eles criarem a ideia muito cômoda de que ‘foi ela quem quis’, ‘ela também aproveitou’, ‘ela também tirou uma casquinha’, ‘ela se insinuou’. Lembro-me, por exemplo, de uma paciente, aparentemente muito normal, inteligente, ativa, bonita, mas que tinha um tumor no cérebro, na área da sexualidade, que virou amante de proctologistas, ginecologistas, foi assediada por psiquiatras, porque tinha uma libido extremamente exagerada.
Os médicos alegavam que ‘era ela quem se lançava sobre eles’, e de fato era assim, pois ela se lançou até sobre mim e sobre um colega que trabalhava comigo. No entanto, foi só operá-la e medicá-la que todo este comportamento desapareceu e ela voltou a ser a mãe, esposa e profissional normal que ela era antes. E mesmo que ela não fosse doente, estaria justificado um médico aproveitar-se do assédio para ter caso com uma paciente? Em psiquiatria já assisti inumeráveis casos de mulheres, antes normais, que se desequilibraram completamente depois de uma experiência dessas. Se essa for a justificativa – ‘ela quis’ – então teríamos de começar a nos relacionarmos sexualmente com crianças e deficientes mentais, pois estes também podem ter uma sexualidade exaltada, ‘eles querem’. Além do mais, é lícito aproveitar-se de uma posição de ‘superioridade’ para seduzir ou cair na sedução, mesmo de quem seja adulto e perfeitamente ‘normal’?
Ora, se eu, como a sociedade, delegamos a um ginecologista a confiança de poder até tocar a intimidade de quem amamos, exige-se destes profissionais a mais completa isenção e neutralidade, em qualquer circunstância, mesmo com o mais poderoso anestésico na cabeça, mesmo com a mais desvairada ninfômona. Além do mais, mesmo as mais normais das mulheres podem, em determinados momentos, estar fragilizadas, tanto física quanto psicologicamente e, em decorrência disto, demonstrar uma carência ou um entusiasmo exagerado por alguma figura significativa, por exemplo, o médico, o advogado, o padre, o pastor, o delegado, o policial etc. Como homens devemos ‘aproveitar’ desses ‘momentos fecundos’, alegando que ‘elas querem’? E essa alegação é muito perigosa, pelo menos por dois motivos: em primeiro lugar, muitas das que realmente ‘querem’ estão psicologicamente perturbadas, diminuídas, fragilizadas.
Esse assunto é tão preocupante e tão antigo que já foi motivo das mais anciãs regras morais do mundo. No Evangelho mesmo consta que Jesus já dizia que ‘ai daquele que induzir um desses pequeninos de espírito ao erro’. Em sua inteligência ele já sabia que muitos poderosos iriam alegar este ‘desejo do outro’ para justificar sua sanha, rapina e instrumentação sexual sobre ele ( ‘a criança quis’, ‘a paciente quis’, ‘a velha quis’, ‘o animal quis’, ‘a mulher insatisfeita no casamento quis’, ‘a adolescente quis’, ‘ela é que era ninfomaníaca’, ‘foi ela quem se aproveitou de mim’, ‘ela estava sob um anestésico, o profol, que a fez ficar hipersexualizada e dar de cima de mim’, ‘o marido dela era um fraquinho, um perdedor e um frouxo, ela quis experimentar algo melhor’, e por aí vai; a criatividade do mal, antes de ser banal como dizia Hanna Arendt, é complexa e interminável).
Em segundo lugar, quem faz isto uma vez, repete sempre, e vai acabar achando que ‘todas querem’, talvez como fez indiscriminadamente o dr. Roger; passam a ter uma visão deturpada da mulher, assim como um médico já antigo e escolado que me disse que não existe mulher que resista a uma sua décima cantada.
Nessa altura o leitor(a) pode estar se perguntando: ‘se isto é tão generalizado, por que não há mais denúncias?’ Esse é um assunto complicado… Para dizermos apenas o necessário para o esclarecimento público e para não incorrermos em faltas éticas, poderíamos dizer que, em primeiro lugar, nenhuma corporação é o foro adequado para o julgamento das próprias mazelas, vide, por exemplo, o Conselho Nacional de Justiça, as diversas corregedorias, tanto de polícias, promotores, magistraturas, eclesiásticos, conselhos profissionais, autarquias etc. Na verdade, em todo lugar desse tipo, em todo lugar do mundo, a tendência é mais acobertar do que escancarar, isto é natural; daí a premente necessidade de retirar esses casos do âmbito ético-profissional e colocá-los no âmbito criminal-penal.
Em segundo lugar, como já dissemos no início, a inteligência, do ponto de vista da evolução da espécie Homo sapiens, é algo que está muito próxima da agressividade, da astúcia, da esperteza e da sexualidade, de modo que ‘grandes figurões’ profissionais da sociedade, poderosos, ricos, bem-relacionados, competentes tecnicamente, podem estar envolvidos em atos desse tipo – não só podem como estão – e quanto mais elevada a escala social do perpetrante maior a impunidade – isto é sobejamente conhecido, e infelizmente praticado, no Brasil.
Marcelo Caixeta é médico psiquiatra