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    Tributação das LCIs e LCAs: A Nova Ameaça Silenciosa ao Mercado Imobiliário

    Jennifer Morete*

    Na última semana, o Ministério da Fazenda anunciou que, a partir de 2026, os rendimentos de Letras de Crédito Imobiliário (LCIs), bem como de outros papéis tradicionalmente isentos, tais como LCAs, CRIs, CRAs e debêntures incentivadas, passarão a ser tributados pela alíquota fixa de 5% de Imposto de Renda. A medida, que será implementada por Medida Provisória, tem como justificativa a correção de assimetrias no mercado financeiro e o aumento da arrecadação federal. No entanto, para além do discurso fiscal, a decisão acende um alerta importante no setor imobiliário: o risco jurídico e econômico de desestruturar um modelo de financiamento habitacional que tem funcionado há anos como suporte ao desenvolvimento urbano.

    As LCIs, em particular, não são apenas instrumentos de investimento. Elas compõem a espinha dorsal do crédito imobiliário privado no país, especialmente no âmbito do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE). Por meio dessas letras, bancos captam recursos com isenção de imposto para o investidor, incentivo este que permite, em contrapartida, a oferta de financiamentos habitacionais com taxas mais acessíveis. Ao tributar essa cadeia, a proposta compromete a eficiência desse mecanismo e tende a elevar o custo do crédito para o consumidor final, inclusive na aquisição da casa própria.

    Dados de entidades representativas do setor apontam que essa tributação pode elevar em até 0,7 ponto percentual as taxas aplicadas aos contratos imobiliários com recursos do SBPE. Em um país onde o acesso à moradia ainda é um desafio social relevante, qualquer interferência que encareça o crédito deve ser cuidadosamente analisada sob a ótica da função social da propriedade (art. 5o, XXIII, da Constituição Federal) e do direito à moradia, reconhecido como direito fundamental no art. 6o da mesma Carta.

    Do ponto de vista jurídico, a medida provoca inquietações. Ainda que restrita a novas emissões, ela altera um regime de incentivos que foi estruturado para fomentar políticas habitacionais e estimular investimentos de longo prazo no setor. A mudança, portanto, suscita questionamentos à luz do princípio da segurança jurídica, pilar do Estado de Direito (art. 5o, caput, CF), bem como do princípio da confiança legítima, reconhecido pela jurisprudência brasileira como fundamental na relação entre Estado e contribuinte.

    É nesse contexto que se insere também o debate sobre a legalidade estrita em matéria tributária (art. 150, I, CF), que exige não apenas observância formal às regras de competência, mas também respeito à coerência e à previsibilidade no tratamento fiscal de setores estratégicos. No caso do mercado imobiliário, a tributação de instrumentos que antes eram protegidos por isenções legais pode ser interpretada como uma quebra de expectativa legítima, sobretudo para aqueles que estruturaram seus projetos e operações com base em incentivos em vigor.

    Outro ponto que merece atenção é o impacto sobre os Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRIs), amplamente utilizados na securitização de recebíveis vinculados a contratos de compra e venda, locações e financiamentos. A tributação dos rendimentos desses papéis afeta diretamente a captação de recursos pelas incorporadoras e pode desestimular a busca por soluções de funding mais sofisticadas, que hoje representam uma alternativa segura e moderna ao crédito bancário tradicional.

    Por mais que a medida não tenha efeito retroativo, sua simples proposta já compromete, em parte, o ambiente de confiança que sustenta o investimento imobiliário no Brasil. A utilização de medida provisória para alterar um regime jurídico consolidado, ainda que constitucionalmente possível, exige cautela institucional, ampla discussão e respeito ao ciclo de planejamento do setor. O imobiliário é uma área de longo prazo, que envolve compromissos financeiros extensos, segurança registral e projeções econômicas de larga escala.

    A proposta ainda será submetida ao Congresso Nacional, mas é fundamental que o debate considere não apenas os efeitos arrecadatórios da medida, mas sua repercussão sobre o mercado, os investidores e os consumidores. O equilíbrio fiscal é importante, mas ele não pode ser perseguido em detrimento da estabilidade jurídica de setores estruturantes da economia, ainda mais do imobiliário, que hoje, de uma forma geral, representa 10% do PIB nacional.

    Sem alarde, o que se tributa aqui não é apenas o rendimento de um papel de investimento: é o próprio fluxo de capital que viabiliza a aquisição, a construção e o desenvolvimento de imóveis no país, afetando diretamente famílias que buscam acesso à moradia e investidores que, confiando em regras estáveis, aportam recursos no setor. A mudança proposta, ainda que voltada ao futuro, pode gerar instabilidade no presente. É essencial que essa decisão seja tratada com a seriedade técnica e jurídica que o tema exige, sob pena de comprometer um dos pilares de sustentação do mercado imobiliário brasileiro: a confiança, tanto de quem financia quanto de quem sonha com um imóvel próprio.

     

    *Dra. Jennifer Morete é Advogada especialista em Direito Imobiliário, e sócia do escritório Morete, Lima & Oliveira Advocacia.

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