Deu no Correio Braziliense
Você faria tudo de novo?
Francenildo, o caseiro. Foto: Orlando Brito
A pergunta do título acima foi feita a quatro cidadãos brasileiros comuns que fizeram denúncias contra políticos poderosos ou órgãos públicos suspeitos de corrupção.
Anos após o ato, eles relatam as pressões e ameaças que sofreram em consequência das atitudes. Falam dos momentos de fama e do posterior esquecimento.
Dois deles, funcionários públicos, sofreram perseguições, enfrentaram sindicâncias, viram as famílias abaladas, até chegaram ao estado de profunda depressão.
Os mais conhecidos são Francenildo Costa, o caseiro do Palocci, e Eriberto França, que prestou depoimento fundamental para o impeachment de Collor. “Eu não faria de novo”, responde Eriberto, hoje desiludido com os políticos.
“Eu faria”, afirma Francenildo (foto acima), que cursa segundo grau e se prepara para uma nova profissão. Um dos servidores assegura que faria de novo. O outro não quis nem aparecer na reportagem. “Por favor, me desculpe, mas tenho medo”, disse ele.
Um quinto personagem não pôde responder a pergunta. Nem ouvi-la. Foi morto com dezenas de facadas seis meses após denunciar um esquema de corrução em prefeituras do Maranhão, com verbas de emendas parlamentares.
Dois meses após fazer a denúncia, que não deu em nada, ele avisou: “Estou marcado para morrer”. Estava mesmo.
Os quatro cidadãos entrevistados reagiram de forma diferente à pressão que sofreram. Alguns mantiveram a tranquilidade, mas outros sucumbiram às ameaças, entraram em depressão e permaneceram meses sob medicação e tratamento psiquiátrico.
Todos repetem que fizeram a coisa certa, mas alguns dizem que fariam diferente em outra oportunidade, ou não fariam mais. “Rapaz, eu sou um cara que não volta atrás. Não faria nada diferente, mas procuraria fazer melhor. Porque ficou a minha palavra contra a dele (Antônio Palocci, ex-ministro de Lula). Faria igual a esse cidadão, o Durval (Barbosa, que denunciou o mensalão do DEM no DF). Teria gravado tudo”, afirma o caseiro Francenildo.
Ele avalia que a sua história teve “o lado bom e o lado ruim”. “O lado bom porque eu fiz uma coisa certa. Mas eu sabia que a coisa ia pesar. Mas tem gente boa aqui em Brasília também.”
A vida pessoal de Francenildo não mudou muito. “Trabalho na mesma coisa que eu fazia. Sou caseiro, mas agora ganho por dia. Estou puxando salário mínimo. E vou tocando os estudos para ver se sou alguém na vida.” Hoje com 29 anos, ele conta que passou dos 7 aos 14 anos ouvindo a mãe mandando: “Filho, estuda, estuda”. “Agora, eu sei que ela estava certa”, reconhece.
Já está cursando o segundo ano do segundo grau. Não se mostra incomodado nem surpreso com a absolvição de Palocci no Supremo Tribunal Federal (STF). “Isso eu já esperava, mas, para mim, a vitória foi minha. Um caseiro, analfabeto, vai lá no STF e ganha quatro votos. Bom demais! Eu sou um vitorioso.”
Ele também aguarda o julgamento das ações que ingressou contra o Caixa Econômica Federal e contra uma revista semanal por danos morais. O valor solicitado é de R$ 30 milhões.
O servidor Alexandre Amaral denunciou desvio (1)de recursos e desmandos administrativos que teriam sido praticados pela diretoria do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), onde trabalhava.
Os diretores passavam o fim de semana em casa com passagens pagas pelos cofres públicos, por exemplo. Após a publicação da denúncia, no Correio, em novembro de 2004, a direção do CNPq abriu sindicância para apurar não a denúncia, mas a autoria do vazamento das informações.
“Respondi a três comissões de sindicância e a dois processos administrativos disciplinares. Resultado: duas advertências”, relata Amaral, que hoje está cedido ao Ministério Público Federal. Ele também respondeu a uma ação por suposto dano moral, mas foi absolvido em primeira instância.
O servidor lembra que se julgava preparado para enfrentar as prováveis retaliações: “Mas eu não estava, ninguém está. É um jogo muito pesado. Eles mentiam, até diante de uma juíza federal. Diziam que eu era louco, desequilibrado. Eu chorei muitas vezes, na sindicância e na Justiça. Depois, entrei em depressão, fiquei dois anos afastado do serviço, em tratamento médico”.
O apoio dos colegas não veio: “De fato, fiquei sozinho. Mas estar isolado não quer dizer estar errado”.
O que Amaral mais lamenta é que os processos dos órgãos federais de investigação e de controle não andaram. “O inquérito da PF está no sétimo delegado. As tomadas de contas engatinham no Tribunal de Contas da União (TCU). Contra os corruptos, tudo anda a passos de tartaruga paraplégica.” Mas de uma coisa ele tem certeza: “Faria tudo de novo”.
Com uma ressalva: “Eu usaria ternos da polícia secreta israelense, com câmeras escondidas. Teria gravado as ameaças que me fizeram a portas fechadas”.
Um servidor que fez denúncias contra o próprio órgão público em que trabalhava falou ao Correio, mas não quis ser identificado.
“Não tenho vergonha de dizer: tenho medo de aparecer e perder o pouco de vida que consegui reconstruir. Apenas para ilustrar um pouco do inferno pelo qual passamos, após as denúncias, fiquei desempregado, me desfiz de diversos bens para manter o mínimo possível para nossa subsistência. Todos os que antes se diziam meus amigos me abandonaram. Passei e ainda passo por tratamento médico e só agora estou conseguindo estabilizar minha vida”, relatou o servidor.
Questionado se faria tudo de novo, respondeu: “Não faria como foi feito (ele passou informações para o Ministério Público e foi identificado). Bastava que eu tivesse colocado os documentos e informações espalhados na mídia sem me identificar. O efeito seria o mesmo, ou seja, não daria em nada no final das contas”.
Ele se mostra desiludido com os poderes públicos. “Na época, acreditava que o país precisava saber que existem pessoas comuns que querem lutar contra a impunidade, a corrupção, mas não temos mais em quem confiar. A corrupção é uma característica de todo o poder público.”
Ele afirma que esse tipo de experiência é única: “A partir do momento em que você se lança em uma aventura destas, de alguma forma você se mata ou é morto”.
Esquecimento e desilusão
O esquecimento incomoda, a falta de reconhecimento machuca. Eriberto França fala com amargura de tudo o que viveu depois de ter prestado o depoimento que derrubou o ex-presidente Fernando Collor, em 1992.
Após 18 anos, a certeza de que nada mudou, apesar do sacrifício pessoal, leva o motorista a responder com convicção quando questionado se faria tudo de novo: “Não faria. Quem quiser acreditar em história de políticos bonzinhos e honestos, acredite. Fiz meu dever de cidadão. Fiz tudo isso e está tudo do mesmo jeito.”
Hoje com 47 anos, grisalho, olhar firme, ele responde sem vacilar a qualquer pergunta. Mantém a simplicidade do cidadão comum que foi um dos principais atores do maior escândalo político após a redemocratização.
Quando relata as tentativas de falar com integrantes da cúpula do governo petista, as palavras são de revolta: “Será que eles têm medo do Eriberto porque sou honesto? Quero ver passarem o sufoco que passei. Um cidadão simples, para enfrentar o que eu passei, com coragem e dignidade. Os amigos me dizem: ‘Não era para você estar esquecido’. Mas estou”.
Diz que, no governo petista, houve “falta de reconhecimento, porque tenho uma parcela nisso. Pode ser um grão de areia, mas ajudei”.
A expressão fechada se desfaz quando ele fala dos momentos de glória, quando percorria o país recebendo homenagens. O que incomodava era a proteção dos agentes federais. “Às vezes, pisava em metralhadora dentro do carro. Para tomar uma cervejinha, tinha que despistar os caras.”
Quando pediu demissão da Radiobrás (atual EBC), logo após prestar depoimento na CPI do PC, em julho de 1992, ficou desempregado. Partiu, então, para a iniciativa privada. Vendia nas ruas de Brasília toalhas bordadas que comprava em Ibitinga (SP). Mas levou “cano” e desistiu.
Passou por apertos até conseguir um emprego no Ministério dos Transportes em 1995, na gestão do ministro Odacir Klein (PMDB). Ficou lá por todo o governo Fernando Henrique.
Foi sondado por vários partidos para ingressar na política, mas rejeitou. “Não dá certo. Eu entro no esquema dos caras ou vou morrer cedo. Tem que fazer o jogo dos caras”.
Para sua surpresa, foi demitido logo após a posse do ministro Anderson Adauto, no início do governo Lula. “Aquele ministro, investigado por corrupção, exonerou eu e minha esposa”. Ele reconhece que, logo após a sua demissão, foi recontratado pela Radiobrás, com a ajuda do senador Aloisio Mercadante (PT-SP).
Eriberto procura deixar claro que não planejou nada do que ocorreu na época. “Não procurei ninguém. Fui procurado pela IstoÉ no Cruzeiro, onde morava. Depois, fui convocado para testemunhar (na CPI do PC). Fui lá para falar a verdade, que eu não podia esconder”.
Ele começou a trabalhar para Collor na campanha, contratado por uma locadora de veículos. “Eu era um boy de luxo. Fazia saques e depósitos. Transportava valores. Faziam até depósito em meu nome para eu sacar”, lembra. Ele contou tudo na CPI e mostrou o caminho que levou aos “fantasmas” de Collor. Foi o ponto de partida para a queda do presidente. “Espero não passar mais isso na minha vida.”