DECIBÉIS

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    Texto reeditado, publicado em Pretextos-elr em 17/11/2009

    – Alô, Marina, é a Carol falando… Tudo bem? Ligo pra lembrar nossa reunião hoje… Que reunião? Ué, do movimento de boicote ao shopping que começou a cobrar pelo estacionamento… Já esqueceu?
    – Ai, meu Deus, esse passarinho… Que passarinho? É um danado que apareceu aqui na rua, faz uns dois meses. Começa a cantar às cinco da manhã e só fecha o bico à noitinha… Sei lá, Marina, que passarinho é… O Pistum disse que falaram pra ele que é sabiá-laranjeira. Pra mim, tanto faz sabiá-laranjeira, mexeriqueira, abacateiro – o que for. É um chato.
    – Mas voltando à reunião: vamos deflagrar o movimento com uma passeata em frente ao shopping e precisamos combinar as ações. Somos cidadãs, Marina, e temos que defender nossos direitos. Minutinho, amiga…
    – Pronto, fui pedir ao Pistum pra baixar um pouco o som. Quem é o Pistum? Ô, Marina, não estou reconhecendo Você… Pistum é o meu filho Ricardo, que Você está cansada de conhecer… Ah, Pistum é porque lembra a sonoridade da marcação dos funks que ele vive ouvindo a toda altura, lá naquele quarto. Sai de lá não, minha filha, só pra ir à escola, tomar banho e comer. Peço pra maneirar o som quando estou ao telefone e à noite, na hora da novela. Fora isso, fica lá se divertindo. Melhor que perambular pela rua fazendo coisa que não presta, né não?
    – Ô passarinho chato, gente!… Xô, passarinho, xô… Ué, Marina, Você está rindo? O quê? Galinha? Fala mais alto… Galinha? Xô é pra espantar galinha, é isso? Eu quero é ficar livre desse passarinho, porque eu acabo ficando doida com esse piu-piu-piu que não para. Vontade de soltar um foguete bem na copa daquela árvore… O quê? Ah, da reunião?
    – Pois é, a gente vai elaborar os cartazes, designar a comissão organizadora do abaixo-assinado… Você vai, né? O quê? Fala de novo, Marina, eu não ouvi… Toda a frota de ônibus urbano do município passa aqui em frente. E ainda tem o barulho dos lixeiros. Parece que eles estão desmanchando o caminhão a marretadas no meio da rua. Ô gente sem noção, cruz credo!
    (Silêncio)
    – Alô, Marina? Desculpe, é que fui até a janela, jogar um cabo de vassoura na copa da árvore pra espantar aquele raio de passarinho. Mas não tive força suficiente e o pau caiu bem na cabeça do carteiro, que atravessava a rua na hora. Maior mico, menina, tive que me abaixar pra não ser vista. Mas quanto à reunião… Alô, Marina…. Marina, alô, V. ainda está aí? Alô!
    – Desligou. Também, com essa titica de passarinho azucrinando a cabeça da gente, não há cidadania que resista.
    por Eduardo Lara Resende

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