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    CONTEXTO – EDUARDO LARA RESENDE

     
    (Imagem: freeparking)
    Viúva e só, dona Mariquinha foi morar no conjunto São Sebastião para se sentir em casa, protegida. Além do mais, era devota do santo. Está certo, o lugar era de gente barulhenta. Mas gente de bem, gente solidária e pobre. Porque solidariedade só se acha na pobreza, ela dizia. Com base em quê ela chegara a essa e a outras tantas conclusões?
    – Com base na vida, meu filho, e na observação daqui mesmo, desta janela onde passo a maior parte do tempo ultimamente. Vejo quem entra, quem sai, quem fica e sai no dia seguinte bem cedinho, que é pra não ser visto… É, eu sei das coisas! – ela assegurava com um ar de malícia no canto dos olhos.
    Conhecia tudo, sabia um pouco da vida de cada um. Só ainda era mistério o casal de jovens que viera morar no apartamento 310. Ele se chamava Domício, e ela, Clarissa. A viúva não conhecia nada mais a respeito de ambos. E isto era grave, urgente. Mais, até: era inquietante, assustador. Com os dois ela ainda não conseguira ir além do bom dia e do boa noite. Eram discretíssimos, silenciosos.
    Apesar disso, a vida seguia sem surpresas. Até a noite em que dona Mariquinha viu o casal chegando em casa, acompanhado de um desconhecido. Não demorou muito e ela passou a perceber movimentação incomum no apartamento 310. Embora as conversas não fossem sempre compreensíveis, a entonação das vozes denunciava discordância entre eles. Até que ficou bem claro o motivo da discussão: Domício insistia para que Clarissa fizesse algo que ela, com voz chorosa, recusava.
    – Vai, Clarissa, vai… Prende ele agora!
    – Não posso… – a moça dizia com voz trêmula. – Não tenho coragem.
    As orelhas de dona Mariquinha se avolumaram, foram crescendo, espicharam-se até onde a imaginação da velha conseguia levar a curiosidade octogenária.
    – Pode sim, tem que pegar ele de jeito… Isso! Agora, agora…
    – Não… não!
    A velha estava a ponto de saltar pela janela, a pouca altura do chão. Tomaria um atalho pela área interna, alcançaria as escadas e iria bater no 310. Levaria com ela a desculpa do ‘zelo comunitário’ : teriam ambos sido avisados a respeito da próxima assembléia do condomínio?
    O barulho aumentava. Eram nítidos os sons de passos, de pisadas duras, de murros na parede. A agitação no apartamento vizinho incluía o barulho de móvel sendo arrastado… Luta? Estaria havendo uma briga? Então era isso! Um crime estava a ponto de acontecer, mas graças à sua boa índole, a moça se recusava a perpetrá-lo.
    – Vai, meu bem, coragem… – Domício insistia. Primeiro com delicadeza, mas logo passou a usar de autoridade – a voz ríspida, denotando aflição e impaciência. Por seu lado, a moça parecia prestes a derramar-se em prantos.
    – Não… não posso, não posso fazer isto!
    – Agora, meu bem, agora… Mata ele, mata!
    Desesperada, Clarissa gritou:
    – Não! Não posso matar, não vou conseguir dormir nunca mais enquanto viver!
    Ofegante, Dona Mariquinha tremia. Com o coração aos pulos, começou a sentir dores no peito. Alcançou o telefone, decidida a pedir socorro médico e policial. Ligou primeiro para o neto Dominguinhos que, por sorte do destino, era subdelegado de polícia. Tirou o homem da cama, o assunto era urgente. Duas pessoas corriam perigo de vida naquele momento: alguém no apartamento vizinho, e ela própria, com taquicardia, aquela falta de ar…
    Logo o policial chegou, trazendo com ele um colega da delegacia. Dona Mariquinha explicava a situação aos arrancos, enquanto o também mobilizado doutor Amaral, cardiologista e amigo de fé, media a pressão arterial da paciente, auscultava-lhe o coração… Tudo normal, era só ansiedade. Tomasse uma pílula para se acalmar.
    – Mas doutor Amaral, vão matar o moço lá no 310… – a viúva afligia-se, ansiosa para ver o neto entrando pelo quarto com a notícia da prisão dos assassinos.
    Logo o subdelegado apareceu, acompanhado do reforço que levara. Um tanto constrangido, informou que o assassinato de fato acontecera, mas fora virtual, em videogame que o marido tentava ensinar a jovem esposa a jogar. E quem a viúva desconfiara que fosse a vítima, era, de fato, o cunhado da jogadora.
    – Não interessa! – disse a velha, sem querer se dar por vencida. – Virtual ou não, assassinato é assassinato.
    E foi rápido preparar um cafezinho para os heróis daquela noite.
    Fonte: Pretextos ELR

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