Murilo Gurjão Silveira Aith*
No final do mês de novembro poderemos ter o desfecho da Revisão da Vida Toda no Supremo Tribunal Federal (STF). Após pedido de vista na mais aguardada ação previdenciária pelos aposentados brasileiros, o ministro Cristiano Zanin, trouxe o processo de volta para julgamento. A conclusão está pautada para o próximo dia 24 de novembro, se encerrando no dia 1º de dezembro. Vem à tona, com essa possível decisão final, os direitos dos aposentados, em especial a hipossuficiência.
Consoante as melhores doutrinas, a hipossuficiência é examinada sob três óticas: (1) a econômica (associada ao poderio financeiro), (2) a técnica (popularmente conhecida como “informacional”, relacionada ao desconhecimento do cidadão médio acerca das normas, bem como dos mecanismos estatais, tornando-o incapaz de avaliar, com precisão, o que realmente é relevante para os seus interesses) e, por fim, (3) o jurídico (visualizado quando há desproporcionalidade/
Não podemos descartar que os aposentados, por analogia, inclusive, ao direito trabalhista, representam a parte mais fraca da relação processual e, por tal razão, é desarrazoado compará-lo com o todo-poderoso Estado.
A hipossuficiência, intrinsicamente relacionada ao direito material – embora somente possa ser identificada dentro da angularização jurídica processual –, permite levar em consideração as condições de vida e situações sociais/econômicas/culturais da parte mais frágil, respeitando-se, assim, a essência da Constituição Federal de 1988.
Estamos tratando de minorias, pessoas em estados de vulnerabilidade e essa é uma razão, dentre inúmeras, para resguardarmos os seus direitos.
Após todas as afrontas da autarquia previdenciária no cumprimento dos próprios comandos exarados pelas Cortes Superiores (afinal, o direito ao melhor benefício foi previamente assegurado pelo STF, pelo crivo dos repetitivos, no Tema de nº 334, no ano de 2013), alguns direitos garantidos pela CRFB/88 e pela Lei de nº 8.213/91 poderão ser, naturalmente, prejudicados (em especial, aqueles atinentes à prescrição).
A clareza do mérito na Revisão da Vida Toda (rememoramos: favorável aos aposentados por seis votos a cinco) fulmina integralmente qualquer controvérsia, já que optar pela regra definitiva, se mais benéfica, é um direito do aposentado, não podendo, sem justo motivo, a parte mais vulnerável da relação jurídica ser, de qualquer modo, prejudicada.
Com a devida vênia, a inobservância das garantias fundamentais e dos direitos que são, ou deveriam ser, incontroversos, podem ocasionar danos marginais a todo o ordenamento. Ignorar o princípio da isonomia e discriminar segurados ao estabelecer critérios para o recebimento integral de um direito – diga-se de passagem, cabalmente tutelado – poderá afetar diversos Temas que ainda tramitam no Pretório Excelso, com o condão de desvirtuar – parcialmente, ou não – tudo o que norteia a Constituição Federal.
Permitir, em silêncio, a criação e consolidação de um precedente com potencial perverso aos hipossuficientes, seria carimbá-lo de forma omissiva. Daí a razão pela qual, contribuir com o debate no alcance da tão pretendida Justiça torna-se imprescindível.
Não é demais reiterar, redundantemente, que estamos tratando de regras que passaram incansavelmente pelo legislativo, pela Suprema Corte (no Tema de nº 334 – direito ao melhor benefício) e, novamente, o caso retorna ao Plenário (por mais duas vezes: Plenário virtual e físico) apenas para reafirmar um direito assegurado anteriormente. A reincidência da autarquia em não obedecer decisões é patente e, no momento, não se pode contemplar ou lhe conceder qualquer benesse que vilipendie os direitos dos desamparados.
Certamente, a maioria dos aposentados já se encontra em prejuízo – seja por conta da decadência ou em razão da prescrição – e, qualquer modulação, com o mérito definido nos atuais moldes, apenas premiariam a autarquia.
Diversos precedentes corroboram as afirmações, pois a mais prestigiada Corte sempre caminhou rente à sociedade, afinal, a vida cotidiana é o traslado da cidadania e a sua missão é garantir a efetivação dos direitos sociais. Vejamos alguns: (1) readequação aos tetos previdenciários – EC’s 20/98 e 41/03 (Min. Rel. Roberto Barroso – Tema nº 313/STF); (2) direito ao melhor benefício (Min. Rel. Ellen Gracie – Tema nº 334/STF) em 2013; (3) desnecessidade de prévio requerimento administrativo e exaurimento das vias administrativas (Min. Rel. Roberto Barroso – Tema nº 350/STF) em 2014.
Os exemplos suso mencionados são apenas uma pequena amostra do fascínio jurisdicional quando o assunto é Previdência Social. Poderíamos citar uma dezena de julgados (alguns, inclusive, do STJ, que segue linha idêntica à do STF – como a revisão das atividades concomitantes – Tema nº 1.070) apenas para reforçarmos a ideia de que o direito ao melhor benefício é um corolário do direito adquirido e do tempus regit actum.
Indo além, como ramo vocacionado à tutela dos aposentados (majoritariamente, grupo composto por pessoas idosas e debilitadas), um dos principais pilares do Direito Previdenciário é o princípio protetivo. Em suas formas, sua função é solucionar conflitos normativos e dúvidas hermenêuticas em favor do segurado (o hipossuficiente).
Hodiernamente, a missão do Judiciário não se esgota nos autos processuais. Mais do que nunca precisamos defender o regime democrático e, genuinamente, a observância do direito conferido pelo Legislativo nos conduz ao cumprimento da função judicial de pacificar um conflito existente sem violar um direito já assegurado pelo Poder competente, afirmando-se, assim, a cidadania. Essa é a razão primordial da existência do Judiciário que, além da técnica jurídica, exerce papel ativo e se consubstancia em um poderoso instrumento a serviço da população.
Decerto, os progressos jurídicos visam a prestação de uma tutela jurisdicional hígida que, propositalmente, seja constitucionalmente adequada.
Para Humberto Ávila: “a interpretação não se caracteriza como um ato de descrição de um significado previamente dado, mas como um ato de decisão que constitui a significação e os sentidos de um texto”. Assim sendo, a atividade do intérprete “não consiste em meramente descrever o significado previamente existente dos dispositivos”, já que “sua atividade consiste em construir esses significados”.
Em síntese, na tarefa de compreender os textos legais, o jurista não atribui “o” significado correto aos termos legais, apenas constrói exemplos de uso da linguagem ou versões de significado – sentidos -, já que a linguagem nunca é algo cedido em caráter antecedente, isto é, pré-dado, mas algo que se concretiza no uso, ou melhor, como uso.
A aplicação do Direito, portanto, não envolve um processo de mera subsunção, mas um processo de criação que deve considerar valores caros ao ordenamento jurídico, perquirindo o espírito da norma e as perspectivas de sentido oferecidas pela combinação com outros elementos de interpretação.
De nada adianta o legislador cumprir o seu dever e amparar o segurado ao lhe oferecer o direito de preferência acerca de regras definitivas/transitórias, se o próprio órgão responsável pela concessão, manutenção e fiscalização dos benefícios previdenciários opta por prejudicá-lo.
Devemos depositar e manter a confiança de sempre na nobre Casa que, desde sempre, preservou a segurança jurídica – principal pilar do Estado Democrático de Direito -, mantendo o sustento da integridade das instituições, a previsibilidade, a confiança na atuação do Poder Público e a estabilidade nas relações jurídicas.
*Murilo Gurjão Silveira Aith é advogado e sócio do escritório Aith, Badari e Luchin advogados